5/26/2010

Ser audaz é...


...apoiar o empreendedor!
Agradecemos mais uma vez ao IAPMEI e ao IPJ a gentileza do prémio atribuído.

Ana Fonseca
Cláudia Barbosa

CRÓNICAS COISAS DA VIDA de Virgínia Trigo - 'Bem-vindos à Babilónia'



Com o ar mais sério deste mundo, Juan, um estudante internacional da disciplina de Empreendedorismo no ISCTE, comunicou-me que o seu projecto de grupo iria ser um “topless bar with snakes” (um bar topless com cobras). O que é que eu achava? “A topless bar with snakes? Aqui, em Lisboa?” O meu ar deve ter sido de uma tal consternação que Juan respondeu com uma breve tremura na voz: “Yes, a topless bar with snakes”. Onde iria ele arranjar as cobras? Por breves momentos, ambos ficámos a olhar um para o outro até que, duvidando do seu acento espanhol, me lembrei de lhe pedir que escrevesse o que me estava a dizer. Juan escreveu: “a tapas bar with snacks” (um bar de tapas com snacks). Esta prática de pedir a alguém que me escreva o que está a dizer quando uma ideia me parece demasiado absurda tornou-se uma verdadeira necessidade depois das primeiras discussões que tive na China com origem neste tipo de mal-entendidos. Logo em 1989 lembro-me de ter entrado numa loja em Hong Kong para perguntar o preço de um casaco: “São mil dólares mas para si, Missie, faço-lhe um desconto de ‘fifty’ (50)%”. Nada mau pensei, vou levá-lo. Só na altura de pagar me apercebi que o desconto não tinha sido de 50 mas de 15% (fifteen): os dois valores eram pronunciados de uma forma exactamente igual, não só por aquela empregada, mas também, como depois haveria de descobrir, pela maior parte das pessoas naquela zona do mundo. Ficámos algum tempo a discutir, mas de nada me valeu e tive de renunciar ao casaco e ao desconto.

Noutra altura, num quarto de hotel em Cantão, tive necessidade de pedir um adaptador para um determinado equipamento eléctrico. Fi-lo por telefone, pronunciando com cuidado “an adaptor, please”. Depois de quase uma hora de espera, alguém bateu à porta com alguma ansiedade. Era um homem de bata branca, uma pequena mala na mão, anunciando-me: “I am your doctor, Missie” (sou o médico, minha senhora). Já na noite anterior Eddie, o recepcionista daquele hotel, me havia surpreendido. Pedi-lhe que me acordasse às 6:30 e ele, prestável, respondeu: “Morning call? No problem.” Puxou de uma folha quadriculada, um quadro de dupla entrada com as horas em linha e os números dos quartos em coluna, mas o breve sibilar entre os dentes, acentuando-se à medida que os seus dedos percorriam a folha, anunciava uma desgraça iminente. Olhando a linha onde as horas se cruzavam com os números dos quartos já totalmente preenchida, informou-me com pesar: “I am sorry Missie but we have run out of 6:30” (lamento, mas as 6:30 estão esgotadas). Não duvidei do pesar de Eddie. Afinal fora ele que, horas antes, ao levar-me a mala até ao quarto, esforçando-se no seu melhor inglês me dissera: “If you are desperate for something, do not hesitate to ask me” (se estiver desesperada por algo, não hesite em pedir-me).

Por essa altura andava eu a fazer entrevistas a recém-empresários num parque industrial de Cantão e, nas nossas conversas, eram frequentes os mal-entendidos sobretudo quando se tratava de valores. Eu conhecia a dimensão chinesa mas, mesmo assim, os números que me diziam eram de todo improváveis. Foi então que me apercebi das diferenças entre as unidades de contagem: a nossa unidade de contagem é o milhar (1000) enquanto que na China é o wan (10000). Só depois disso, forçando-me e forçando os meus interlocutores a escrevermos os números sem separação decimal – prática que recomendo a quem quiser negociar ou estabelecer qualquer forma de interacção na China – é que os valores começaram a fazer sentido.

De entre as maiores recompensas que podemos ter ao viver no estrangeiro está este sentimento estimulante de satisfação quando conseguimos resolver os pequenos mistérios da vida local e a China contribui com mais do que a sua quota parte para nos proporcionar esse prazer. Foi o que relembrei ainda em Julho deste ano quando, num restaurante de Xian, um solícito empregado me perguntou o que eu queria beber. “Pode ser uma cerveja”, respondi. “Grande ou pequena?” “Pequena por favor”. “Desculpe Missie, mas só temos grandes”, foi a resposta imediata. Foram precisamente os meus alunos chineses que me indicaram o caminho da escrita ao vê-los resolver as suas interpretações dissonantes desenhando um ideograma com um dedo na palma da outra mão, hábito que podemos observar frequentemente na China. Mas, como vimos no caso de Juan, numa Europa sem fronteiras, não é preciso ir tão longe. São as diferentes culturas que vêm ter connosco e assim alargam os nossos horizontes, expondo-nos a novas formas de pensar, a outros pontos de vista, formas de arte, actividades sociais e padrões de comportamento que dantes estávamos longe de supor que existissem. “Pode-se aprender muito quando se deixa Ítaca” disse Omero em tempos idos.

Virgínia Trigo

'Audacity of Huge' de Simian Mobile Disco



Nomeada música oficial do AUDAX!

AF

5/21/2010

We can do it!



A Forbes Insight e KeyBank’s Key4Women efectuou um estudo sobre mulheres empreendedoras que estavam a sair da recessão e quais as suas atitudes perante os clientes. A amostra foram cerca de 320 mulheres que estão à frente de pequenos negócios e o resultado foi deveras assustador.

O estudo revelou que com a recessão económica as mulheres focaram-se totalmente no serviço ao cliente, até aí tudo bem, 84% respondeu que o seu core business estava centrado no cliente, seguindo sempre a filosofia que custa menos manter um cliente antigo do que ganhar um novo. Isto faz-nos crer que estão atentas às necessidades dos clientes, as suas sugestões, usam ferramentas online para monotorizar comentários dos seus serviços, etc.

Mas ao que parece isto não acontece. Quando questionadas sobre as suas relações com a Internet e as redes sociais, apenas:

37% usa LinkedIn
27% tem um perfil no Facebook
17% utilize o Twitter
16% usa Blogs

Mais alarmante é que 25% não tem site.

Empreendedoras Portuguesas toca a invadir as redes sociais, sejam audazes. We can do it!

Leiam aqui o estudo.

CB

5/19/2010

CRÓNICAS COISAS DA VIDA de Virgínia Trigo - 'Sete Dias em Teerão'


Faz agora dez anos eu estive sete dias em Teerão. Não fosse esta espera de mais de três horas nesta sala de aeroporto e a memória desse tempo teria continuado algures num limbo entre o cérebro e o coração. Mas assim sendo, levanto-me e vou à procura de um livro e vejo este. Na capa estão duas mulheres de lenço preto na cabeça, curvadas sobre as suas próprias mãos. Do seu rosto vem toda a atenção. O que fazem? Lêem às escondidas um livro em Teerão. Também eu já li às escondidas em Teerão, não a Lolita de Nabokov como fazem estas mulheres, mas algo de igualmente proibido e subversivo: eu li uma Elle em Teerão.

Somos um grupo de 40 pessoas dos mais diversos sítios da Ásia trazidas pelo ESCAP(1),  um organismo das Nações Unidas. Somos presidentes ou responsáveis de escolas de turismo e hotelaria da região e já há muito que o Sr. V., o director para o turismo do ESCAP, manobrava nos bastidores para conseguir esta reunião. O Sr. V. tinha um sonho: conseguir unir as escolas de turismo da Ásia numa rede de intercâmbio, uma espécie de Erasmus na manta de retalhos que é a região. E queria começar exactamente por onde a Ásia começa: pelo Irão. Nunca nenhum representante do Irão fora às reuniões preparatórias, mas ainda assim, com a tenacidade de quem se aproxima da reforma e quer a todo o custo deixar obra feita, o Sr. V. conseguiu levar-nos a Teerão. Por isso aqui estamos, as cinco mulheres da delegação devidamente avisadas da nossa aparência: vestes largas, compridas e escuras, sapatos fechados, lenço na cabeça, maquilhagem nem pensar.

Os meus braços revelam-se desde logo uma preocupação: as mangas são afinal demasiado curtas e os dez centímetros de pele que separam o meu punho do início dos dedos são bastante chocantes e não consigo deixar de os olhar. Agarro as mangas com as pontas dos dedos e assim fico até que me entusiasmo a falar e retomo este mau hábito de arregaçar as mangas antes de fazer avançar um argumento. Atento, o guardião que me vigia manda-me puxá-las para baixo. Peço desculpa e obedeço.


O meu quarto de hotel padece das suas próprias queixas e, olhando pela janela, vejo que o verão chegou à cidade e às montanhas que dali se avistam muito antes de nós. Tudo é castanho e pó. Este livro fala de jardins e árvores em Teerão e garante o verde daquelas montanhas numa qualquer estação do ano, mas o único verde na minha memória é o do fato de caqui deste homem que incessantemente canta na televisão. No segundo dia as minhas duas acompanhantes, Omid e Zarrin, nos seus 20 anos, querem visitar o meu quarto. Vamos. Enquanto caminhamos pelos corredores e espaços públicos do hotel fazemo-lo em silêncio ou falando baixinho como é nossa condição, mas assim que a porta se fecha por detrás de nós elas arrancam os lenços e despem as batas: têm jeans e t-shirts, são jovens como outras quaisquer. Que não faz mal, asseguram-me e insistem em ver o meu cabelo. Admiram-se como o posso ter tão curto, será a moda? Vou então à minha mala e tiro de lá a Elle, minha companheira de avião, ajoelhamo-nos quase ao mesmo tempo e começamos a folheá-la. Nessa noite chegamos apenas à página 10. Digo-lhes para a levarem, que fiquem com ela, mas recusam-se, têm medo, por isso volto a guardá-la, dobrada naquela página que Zarrin pediu, disfarçada por entre a roupa.

Assim é o nosso ritual diário. Se pudessem ver-nos... Todas as noites começamos por nos maquilhar acentuando bem os lábios, a parte mais infame do nosso rosto, depois lemos a revista de joelhos, a seguir dançamos, sim dançamos, os braços levantados como em Zorba, o Grego, por fim lavamos a cara e elas vão-se embora com um sorriso tão cúmplice que até pode ser perigoso. No quinto dia o Sr. V. quer chegar a uma resolução: quem organizar a próxima reunião ficará presidente da rede. Candidato-me mas há mais três candidaturas: a Índia, a Tailândia e Hong Kong. Como não consegue chegar ao consenso que sempre procura, o Sr. V. sugere que cada um de nós defenda a sua posição, depois será a votação. Levanto-me para falar e, maldição, arregaço as mangas. O guardião avança para mim, mas aquele era um momento temerário, levanto o braço esquerdo e faço-lhe sinal para parar. E foi com uma mão erguida e a outra em cima da mesa que durante dez minutos defendi as vantagens de Macau e da minha escola e me tornei durante quatro anos na primeira presidente da rede APETIT(2) .

Esta é a nossa última noite, Omid e Zarrin estão orgulhosas de mim e já passámos por uma última provação. Zarrin acedeu hoje ao meu insistente pedido para sairmos fora do hotel e comprar um tapete. Fizemo-lo de cabeça baixa e muito depressa, mas eu senti o desconforto do suspense e que as piores eventualidades pairavam no ar. É esse tapete, dependurado na parede da minha sala, à frente do qual eu hoje me passeio e vejo uma janela que se abre e fecha como Zarrin me ensinou. Um tapete mágico, grita ela atravessando-o com o seu sorriso luminoso para me lembrar que nunca, nem nos meus tempos de adolescente num colégio interno, eu experimentei tamanha solidariedade e cumplicidade, sentimentos tão profundamente humanos como naqueles sete dias em Teerão.

Vírgínia Trigo

(1) Economic and Social Commission for Asia and the Pacific
(2) Asia-Pacific Education and Training Institutions in Tourism

5/07/2010

CRÓNICAS DA CHINA de Virgínia Trigo - 'O Súbito Interesse nos Pastéis de Nata'




Esta é a história de como, no curto espaço de uma década, o pastel de nata saltou do balcão pequeno e escuso de uma pastelaria na ilha de Coloane em Macau para o Kentucky Fried Chicken onde, ao lado da figura sorridente do coronel Sanders, servido com um ice coffee, faz hoje as delícias de todo o Sudeste Asiático. Tudo começou em 1989 numa altura em que um conhecido cozinheiro português se deslocava regularmente ao Hotel Hyatt, na Taipa em Macau, para promover festivais de comida portuguesa. Uma iguaria obrigatória era, claro, o pastel de nata. Por ele se interessou um australiano residente em Macau há já vários anos, farmacêutico de profissão e que após uma tentativa falhada de abrir uma farmácia no Território acabara a trabalhar no casino do hotel. Durante as estadas do chefe português, Andrew não parava de o importunar. E como se consegue esta massa estaladiça de mil folhas? E este creme rico e saboroso? Com uma informação daqui, outra dacolá e o gosto pela experimentação da sua prática farmacêutica, em breve Andrew estava pronto para mudar de vida. Abriu uma pequena pastelaria no canto de um largo em Coloane a que chamou Andrew’s e ali mesmo, apenas com um balcão, sem uma única mesa à qual nos pudéssemos sentar, começou uma gloriosa história de sucesso.

Os pastéis de Andrew não eram bem os ‘nossos’. Ele adaptara-os ao gosto asiático, eram maiores, a massa mais pesada, o recheio mais doce e enjoativo, mas chamara-lhes Portuguese Egg Tarts ou, em cantonense, Portuguese Dan Tat, servia-os quentes e cheios de canela. Aos domingos os turistas de Hong Kong faziam filas para os comprar. Diz-se que um dia um cliente mais entusiasta encomendou nada menos do que 150 dúzias e Macau tornou-se de repente demasiado pequeno para guardar tal segredo. Foi aberta uma filial em Hong Kong, igualmente pequena e escusa, igualmente assediada por uma enorme fila de clientes que ainda mais se adensou quando foi vista e fotografada em penosa espera uma célebre actriz de cinema que apenas queria comprar meia dúzia. O pastel de nata tornou-se companhia obrigatória do chá das 5 em Hong Kong, objecto de troca de presentes e adoçou muitas tardes ásperas nos escritórios das torres de vidro dos especialistas em alta finança da cidade. Em Macau todos queriam aprender a fazê-los, uma espécie de direito moral, dadas as ligações antigas a Lisboa.

Foi neste clima de euforia que um dia recebi um telefonema de alguém que não conhecia, mas que se apresentou como familiar de uma amiga e disse ser chinês de Hong Kong residente no Canadá. Convidava-me para almoçar e queria falar-me de um assunto de interesse comum. Aceitei, incapaz de resistir à mais leve curiosidade e foi assim que me vi no reservado de um primeiro andar de um restaurante na zona mais densamente povoada de Macau. Depois de uma introdução longa em que, um a um, foram consumidos os seis primeiros pratos de uma refeição chinesa, o meu anfitrião confessou-me que, sabendo das minhas ligações a Portugal, visto que eu era portuguesa, o seu desejo era propor-me um negócio de fabricação das famosas Portuguese Egg Tarts, as verdadeiras – nem eu poderia produzir outras, sendo portuguesa – que pudéssemos depois, com legitimidade, introduzir na China. Explicou-me todos os pormenores do negócio e apresentou números: para já milhares e depois milhões de chineses se iriam deliciar com as tartes. Adivinhando alguma relutância da minha parte, o meu interlocutor não hesitou em recorrer à simbologia chinesa, invocando a nossa amizade e colaboração futuras como a imagem de um rio deslizando entre duas montanhas, fertilizando as planícies por onde corre e desaguando numa placidez dourada, no sítio exacto onde bebe o dragão.



Mas por essa altura já Andrew tinha vendido a fórmula do Portuguese Dan Tat ao Kentucky Fried Chicken e este entrara em força em Hong Kong e Taiwan e mais tarde em toda a China. “A febre dos Portuguese egg tart varre a cidade de Taipei” diz o Taiwan Journal de 9 de Novembro de 1998 e acrescenta existirem sinais por todo o lado desde as longas filas nas pastelarias do centro, aos anúncios de parede, à escassez de ovos nos produtores locais. O jornal informa que, para atrair clientes, até uma loja de venda de computadores havia instalado um armário de vidro sobre o balcão com as famosas tartes. Quando a KFC introduziu os pastéis de nata já estes eram conhecidos em Taiwan, mas a sua presença na cadeia contribuiu para aumentar a febre e nem mesmo ela estava preparada para tamanho êxito. O jornal dá conta de muitos oportunistas que, depois de esperarem mais de três ou quatro horas numa fila, os compram às centenas para montarem uma banca logo ali ao virar da esquina e os venderem pelo dobro do preço. Para evitar semelhante comportamento muitas lojas limitaram o número de unidades vendidas a cada cliente o que ainda mais exacerbou o desejo de as comprar. Um representante da KFC confessou-se admirado com tanto sucesso e de certo modo apreensivo pois em regra tamanho alvoroço no início poderá prejudicar o produto no futuro.

Ainda antes do virar do século o pastel de nata já era vendido um pouco por todo o lado na China. Embora muito do entusiasmo inicial se tenha perdido, lembrei-me desta história ao deparar recentemente em Xi’an, no coração da China, com os famosos pastéis em evidência na montra de uma pastelaria da moda. Ao lado deste objecto de eleição estavam uma magnífica embalagem cilíndrica especialmente concebida para 8 unidades, o número da sorte, e um cartaz de fundo dourado e letras vermelhas onde se lia em chinês e inglês: “Portuguese egg tarts, o gosto internacional é mundialmente famoso”. O Portuguese egg tart faz o seu caminho.

Virgínia Trigo

5/01/2010

CRÓNICAS DE EMPREENDEDORISMO de Virgínia Trigo - 'Isto Aqui Não é Inferno'



“Fiar é obra do diabo e isto aqui não é inferno”. Não fora o ar duro e desconfiado da vendedora de frutas e legumes e eu até teria achado graça à improvisada tabuleta, restos de uma caixa de cartão, com os dizeres em maiúsculas, as letras agarrando-se umas às outras para caberem todas já no fim, assim plantada no meio da fruta. Decidi suavizá-la comprando uma couve portuguesa e meia dúzia de maçãs enquanto perguntava apontando para a tabuleta: “os clientes aqui não pagam é?” Que não pagavam, nem ali nem em lado nenhum informou-me com aspereza. Não são os clientes pequenos, a dona de casa ou o reformado que todos os dias compra uma peça de fruta ou uma couve, esses têm de pagar, mas os grandes, os donos de restaurantes ou afins. Da primeira vez que compram pagam, para nos cativar talvez, mas depois é “passe lá pelo estabelecimento que nós liquidamos isto”. Passamos mas não estão, voltamos vezes sem conta e zangam-se connosco: “eu não lhe disse para vir amanhã?” E seria assim com a praça toda? É por todo o lado, eu não sabia?

Sabia, pois. Nas minhas aulas de Empreendedorismo no ISCTE, os alunos de mestrado com experiência empreendedora confrontam-me com isso todas as aulas: “não podemos ‘fiar’ a ninguém a começar pelo Estado”. E sem crédito como pode uma economia funcionar? Nos últimos dois ou três anos temo-nos multiplicado em acções de promoção do empreendedorismo: educação primária, secundária e superior; formação; conferências; legislação; esquemas de financiamento; mentoria... um sem número de acções por todo o lado e por todo o país. Contudo nenhuma actividade empreendedora sustentada se pode desenrolar neste pôr de lado a consciência e colocar a ausência de vergonha no seu lugar.

A riqueza de um país depende da produtividade dos seus cidadãos que, por seu turno, depende dos recursos, da tecnologia e da organização. Muitos países – o Japão e outras economias asiáticas são disso um exemplo – conseguiram ultrapassar a ausência de recursos naturais devido aos avanços tecnológicos e à organização. Como os obstáculos internacionais à aquisição de tecnologia estão hoje quase desaparecidos, o elemento último, a necessidade crucial para se aumentar a produtividade e, consequentemente, a riqueza é o desenvolvimento de uma boa organização. Mas a organização não existe num vácuo, ela opera em sistema, é parte de um grupo de elementos interdependentes e inter-relacionados que formam um todo complexo, isto é, o comportamento de determinados elementos afecta o comportamento de todos os outros.

Se temos como prática pagar tarde ou não pagar, aqueles a quem devemos também não poderão pagar a quem devem, num efeito em cadeia que rapidamente se transforma em bola de neve e que, em sistema, nos vai de novo afectar também. E é assim que o desastre surge na vida e nela vai abrindo o seu caminho. A princípio é uma coisita sem importância, oculta em qualquer canto sombrio, mas acaba por tornar inoperante toda a economia.

O à-vontade, a norma que se instalou entre nós do não pagar como legítimo, socialmente aceite e até representativo de uma certa sagacidade nos negócios – como ilustra o ditado “pagar e morrer quanto mais tarde melhor” – entra na esfera dos princípios morais. Como tal, é vago e abstracto e a sua aplicação aos negócios é frequentemente indeterminada e difícil de executar. Ele traz também muitas outras coisas indesejáveis como a falta de confiança, obviamente generalizada na nossa economia e que, como todos sabemos, impõe elevados custos de transacção e, portanto, rudes golpes no empreendedorismo. O emprendedorismo poderá levar à prosperidade do nosso país, mas o simples desejo de prosperidade não chega para que o empreendedorismo seja um êxito. O facto de se acender lume não significa que haja comida para cozinhar.

Se, neste princípio de 2007, de entre tantos e tão complexos problemas que a nossa economia tem, me pedissem para eleger um, eu escolheria esta indiferença à necessidade de pagar como aquele que mais urge combater. Fechando os olhos e cerrando os punhos pediria dois desejos:

(1) que o Estado não seja como a mãe caranguejo que teima em ensinar os seus filhos a andar a direito. Um Estado que não cumpre os seus prazos de pagamento não pode inspirar os seus cidadãos a que o façam;

(2) que todos nós, cidadãos, saibamos que não podemos passar a vida a enganar, senão acabaremos por nos enganar a nós próprios.

Porque isto aqui não é inferno.

Virgínia Trigo

Texto publicado pela primeira vez no Jornal de Negócios a 02.01.2007