Quando me visitou pela primeira vez no ISCTE o Sr. Souza tinha acabado de ler o meu livro “Como negociar na China?”. Achara-o útil, disse-me, e tinha um conselho a pedir-me. Industrial do Norte o seu primeiro contacto com a China já vinha dos anos 70, de uma feira que visitara num país de Leste e onde se deixara encantar por uns ferros de engomar revestidos a teflon. O produto era ainda uma relativa novidade, mas o Sr. Souza experimentou um exemplar – para que não restassem dúvidas disseram-lhe até que o trouxesse para casa – e o produto era bom e, claro, o preço imbatível. Movendo montanhas, obstáculo atrás de obstáculo – já podem ver, naquela altura – o Sr. Souza encomendou logo um contentor e pôs os ferros à venda. Foi então que a desgraça aconteceu: um após o outro os ferros começaram a ser devolvidos. Com o aquecimento, o teflon derretia e agarrava-se à roupa danificando-a. Entre as reclamações dos clientes e o silêncio obstinado do vendedor de quem nunca recebeu uma única palavra, o Sr. Souza retirou os ferros do mercado e jurou, disse-me que jurou, nunca mais querer ter nada a ver com a China.
Mas veio entretanto a política de abertura, a invasão do mercado por produtos chineses – cada vez melhores e cada vez mais baratos – a entrada na Organização Mundial do Comércio, a China sempre na televisão e nos jornais, uma China séria e responsável. Impressionado, já sem ressentimentos, o Sr. Souza foi à China. E era precisamente sobre essa viagem que me queria falar. Sentou-se na minha frente, os dedos da sua mão direita brincando durante momentos com o relógio do seu braço esquerdo. Depois, já com os cotovelos sobre a secretária exclamou: “Aquilo é gente muito complicada”. Antes não fosse, mas os desejos não são cavalos que possamos cavalgar através dos nossos sonhos.
Depois da visita o seu desejo era bem simples, apenas encetar uma relação comercial, do interesse de ambas as partes. Sim, já tinha visitado a empresa, a empresa era grande, não sabia se era estatal, na realidade não sabia bem o que era, mas tinha muita gente a trabalhar e até conhecia uma pessoa em Xangai que talvez fosse director nesta fábrica de Cantão, mas vendo bem talvez não. Há mais de um ano que trocava correspondência, a menina Xu até sabia inglês se bem que não se pudesse dizer que aquilo era mesmo inglês pois a maior parte das vezes não se entendia. Veja bem o que estamos para aqui a escrever, como vamos sair disto? Na folha de papel que me estendeu o Sr. Souza tinha mandado transcrever a mais recente troca de emails que durava há já três meses:
“Cara Mna. Xu, gostaria de agendar uma reunião consigo, nos V/ escritórios em Guangzhou, para trocarmos ideias, com vista ao desenvolvimento das vendas e das boas relações, entre ambas as companhias. Sugiro os dias 18 e 19, a uma hora mais conveniente para si”.
“Caro Sr., em relação à sua visita, sugerimos que nos visite a 18 ou 19 a uma hora mais conveniente para si. Depois, pode seguir para Portugal, via Hong Kong. Ficamos a aguardar a S/ breve resposta. Obrigado”.
“Cara Mna. Xu, pedimos o favor de nos informar qual a hora mais conveniente para si, para a realização da reunião no dia 18”.
“Caro Sr., a sua visita pode ser 18 ou 19 a uma hora mais conveniente para si. Depois pode seguir para Portugal, via Hong Kong. Se tiver alguma questão, por favor, informe-nos”.
O que é que eles queriam? Porque rodeavam permanentemente o assunto sem dar uma resposta directa? E porque o mandavam seguir logo para Portugal sem que o tivesse perguntado? Era como se a menina Xu estivesse num mundo e o Sr. Souza noutro e ambos (ou um deles?) estivessem a tentar lançar uma ponte ou a furar uma barreira. Sabendo que só as árvores, os animais e as aves dizem verdades totais pois não têm o poder da invenção, desenhámos, o Sr. Souza e eu, uma estratégia para conseguir esta visita. Finalmente, ele foi de novo à China.
Entretanto o Eng. Torres, um empresário de Moçambique que conheço, interessou-se há cerca de um ano também pela China. Talvez porque desconhecia em absoluto o país resolveu seguir o meu conselho: não encetar relações comerciais directamente com nenhuma empresa chinesa e utilizar antes os serviços da sua embaixada. Os protocolos que já estabeleceu com um parceiro chinês tiveram a chancela da embaixada e assim, ao mais alto nível, a relação desenrolou-se célere. Agora a preocupação do Eng. Torres não é a existência de negócios com a China, mas antes se o país vai ou não valorizar o renmimbi.
O Sr. Souza regressou na semana passada exausto ainda da sua incursão: muita gente, muito tempo, muito espaço. Imagine-se que o Sr. Souza viajou de Pequim a Zhengzhou e viu – experimentou – o que nunca imaginara ter visto: um autocarro só com beliches. Felizmente coube-lhe a cama de baixo. Entrou no autocarro de sapatos na mão e, com os outros 39 viajantes, preparou-se para enfrentar a viagem de 12 horas. “Diz no seu livro que o Confúcio – não foi? – disse que um homem sincero não se aproveita de um quarto escuro, mas olhe que eles lá não ligam muito a isso.” Contei-lhe do Eng. Torres. O Sr. Souza olhou-me com olhos que, tais como os do Sr. Ventura de Miguel Torga, já tinham visto a China, e perguntou-me: “Mas você acha que eles na nossa embaixada também fazem isso?” Eu não sei.
Virgínia Trigo
ISCTE Business School
Virgínia Trigo
ISCTE Business School
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