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3/04/2011

CRÓNICAS DA CHINA de Virgínia Trigo: Uma questão de estratégia

Como é habitual por alturas do Ano Novo Chinês, o que aconteceu recentemente em 3 de Fevereiro, recebo sempre inúmeras felicitações e desejos de que o novo ano me seja muito próspero. Vem tudo acompanhado por diversas interpretações do que representa aquele animal no zodíaco chinês e em especial do que ele representará para mim, o que nem sempre é coisa boa ou fácil de entender considerando que a maior parte das traduções foi feita pelo google.



Fiquei pois a saber que este – o ano do Coelho (tu zi em chinês) – irá ser um ano de reflexão em que todos poderemos “respirar e acalmar os nervos”. Deveremos também concentrar-nos na família, na segurança e na diplomacia, o que não parecem ser maus conselhos. Segundo me afiançou a minha amiga Yi Lin, ela própria Coelho, estes figuram sempre na lista das pessoas melhor vestidas, são carismáticos, pensativos e calmos. São também pessoas de confiança para relações de negócio e possuem a qualidade mais admirada por todos os chineses: são grandes estrategas. Numa negociação nunca mostram os seus trunfos até que chegue o momento exacto, e sabem instintivamente o que fazer em cada ocasião.

Yi Lin está mesmo certa de que o seu herói preferido, Zhuge Liang, cujo feito mais notável está descrito no romance clássico “Os Três Reinos”, seria Coelho. O episódio passou-se há muitos anos quando a China estava dividida em três reinos e o exército do temível general Cao Cao se aglomerava na margem norte do rio Yangtse preparando-se para atacar os exércitos dos outros dois reinos, na margem sul, rivais e aliados. Estes eram chefiados por Zhou Yu e Zhuge Liang mas temiam o momento do confronto porque não tinham flechas em número suficiente. Que não se preocupassem, garantiu Zhuge Liang, ele mesmo se encarregaria de arranjar nada menos do que cem mil flechas no prazo de três dias. Tal feito parecia impossível tanto mais que Zhuge Liang, em vez de se dedicar a qualquer actividade digna, passou o tempo a beber e a compor poemas. A única coisa que fez foi ordenar a construção de um sem número de barcos de palha.

Um dia antes de terminado o prazo, quando um espesso nevoeiro se instalou sobre o rio, Zhuge Liang mandou avançar uma vintena de barcos ao ritmo de tambores colocando os outros bem em evidência sobre o cais. Olhando para as imagens fantasmagóricas que avançavam sobre si, Cao Cao, ordenou ao seu exército que disparasse e fê-lo com uma fúria tal que, recolhidos os barcos de palha, a quantidade de flechas ultrapassou largamente o número pretendido.

A figura importante nesta história é o estratega, aquele que sabe aproveitar o potencial de uma situação, o que não se fixa na acção, mas em tudo o que está a montante da acção e nas condições que a propiciam como, neste caso, o nevoeiro habitual no rio naquela época do ano. A eficácia é tanto maior quanto mais discreta for a estratégia.

Quanto a mim, creio que não só Zhuge Liang, mas toda a diplomacia chinesa é Coelho, como ainda recentemente ficou demonstrado nos incidentes de Setembro passado entre a China e o Japão sobre as muito disputadas ilhas de Diaoyu (Senkaku para os japoneses), quando um barco de pesca chinês colidiu com um navio da guarda costeira japonesa culminando com a detenção do capitão chinês. Enquanto ambos os lados clamavam quanto à libertação, a diplomacia chinesa fez discretamente saber que aquelas encomendas de terras raras que o Japão fizera poderiam estar atrasadas ou o preço poderia inclusivamente aumentar. Foi quanto bastou para que o capitão fosse libertado e para que o mundo acordasse para a questão das terras raras, o conjunto de 17 minerais que são utilizados em tudo o que integra a electrónica moderna e a tecnologia “verde” – cada Toyota Prius leva quase um quilo – e de que a China é simplesmente o maior fornecedor mundial.

Enquanto isso, Yi Lin lembrou-me que o Coelho simboliza a lua, enquanto o pavão simboliza o sol. Em conjunto estes dois animais representam o princípio e o fim do dia, o Yin e o Yang da vida, pelo que, no ano do Coelho, a satisfação dos nossos pedidos e desejos poderá ser multiplicada. Se em cada uma das doze luas que hão-de compor este ano tivermos o cuidado de observar a lua cheia, o nosso “eu” interior (qi) será fortificado e a sabedoria entrará nas nossas vidas. É uma questão de estratégia.

Virgínia Trigo
ISCTE Business School

11/25/2010

CRÓNICAS DA CHINA de Virgínia Trigo - 'A Glória Breve da Pasta de Sardinha Manná em Hong Kong'



Se houvesse uma espécie de concurso para Miss Universo entre todas as cidades do mundo, Hong Kong iria por certo ter muitas nomeações: possui o terminal de aeroporto com o maior volume de carga aérea do mundo (cerca de 2,5 milhões de toneladas de carga por ano) e também o maior porto de contentores; o maior consumo de brandy e cognac per capita; o maior número de Rolls Royce por quilómetro quadrado; o maior passeio rolante; o maior consumo de laranjas (25 kg por ano e por pessoa); o maior consumo de collants por cada par de pernas e, com o maior número de bilionários por cada cem milhões de pessoas, os habitantes de Hong Kong mostram-se particularmente imunes a assomos de inveja social.

Em muitos outros aspectos, apesar da ambiciosa concorrência de Xangai, Hong Kong continua imbatível: é considerada pelo Índice de Liberdade Económica da Heritage Foundation, há 16 anos consecutivos, a economia mais livre do mundo; ocupa o segundo lugar no Easy of Doing Business Index do Banco Mundial; possui um sistema financeiro sólido, vastas reservas de divisas estrangeiras, praticamente não tem dívida pública, o sistema legal é forte e as medidas anti-corrupção rigorosas. Tudo garantias para que Hong Kong continue a ser para os serviços – 91% do seu PIB – o coração da Ásia.



Em certos dias Hong Kong tem também as maiores filas à porta das lojas Louis Vuitton de que tenho memória e é, pude por diversas vezes comprová-lo, o sítio onde as pessoas carregam mais depressa no botão “Fechar a Porta” de um elevador quando vêem alguém a correr para entrar. Foi num desses dias, já a sair do elevador, que a minha amiga Nancy Lau me telefonou para pedir, considerando a minha deslocação em breve a Hong Kong, que lhe levasse algumas embalagens de Pasta de Sardinha Manná. De Portugal? perguntei. Sim, esta pasta não podia ser encontrada em Hong Kong e tinha simplesmente desaparecido das prateleiras dos supermercados em Macau. Depois me explicaria.

O fenómeno ficara a dever-se à breve mas entusiástica referência ao produto pela estrela de televisão So Sze Wong na série 2 do seu programa “So Good”. DJ, especialista e crítica de cozinha dotada de um estilo e personalidade únicos, So Sze procura especialidades dentro e fora de Hong Kong para as apresentar a uma vasta audiência que vibra com os seus gestos largos e decididos e sobretudo com os seus famosos “Ah So!” exclamados sempre que se depara com algo que a surpreende ou encanta. E foi precisamente com um “Ah So” profundo e vibrante que ela declarou a pasta de sardinha Manná deliciosa. Para que não restassem dúvidas provou-a ali mesmo, em frente do público e exclamou “Ah So!”. Foi quanto bastou para que, no fim de semana seguinte, a população de Hong Kong se precipitasse para Macau em busca do recém descoberto e precioso produto dizimando-o dos supermercados.

O entusiasmo gerado por So Sze não terá durado mais do que escassas semanas, mas os supermercados levaram algum tempo a recompor-se como sempre acontece quando So Sze desencadeia um súbito interesse em algo, provocando uma urgência premente em o adquirir e, se possível, armazenar. A minha amiga Nancy, como os seus concidadãos de Hong Kong, prefere as noites longas, a vida da cidade, o barulho constante da multidão, as filas que põem à prova o seu estoicismo, uma partilhada impaciência colectiva, mas ainda assim não consegue esconder um certo ressentimento para com So Sze e não apenas por causa da escassez da pasta de sardinha Manná. Logo a seguir e ainda em Macau, So Sze escolheu como alvo uma pequena loja de sopa de fitas que habitualmente servia alunos do liceu que Nancy frequentara em criança. Desorientado e incapaz de corresponder a uma tão súbita avalanche da procura, o dono que pacatamente geria a loja há mais de trinta anos, fechou-a provocando um sentimento de orfandade nas várias gerações que, na sua infância e juventude, se tinham deliciado em Macau com o stock limitado, mas servido de forma generosa, de uma loja que jamais tinham visto fechada.

Virgínia Trigo
ISCTE-IUL Business School

8/02/2010

CRONICAS DA CHINA de Virginia Trigo - 'Dar Corda a um Cão'

Nesta sala de aeroporto acaba de passar-se uma coisa engraçada. Eu estou com o meu livro, um café e uma caixa de biscoitos na mesa de apoio à esquerda da minha cadeira e eis senão quando o meu companheiro de espera, um senhor chinês de raros cabelos brancos, estende uma mão silenciosa e subrepticiamente me rouba um deles. Olho-o com alguma indignação. O rosto era plácido, com uma certa sabedoria nos olhos como se de facto vissem o que estavam a olhar, mas ainda assim aproximo a caixa um pouco mais para o meu lado retirando eu própria ostensivamente um biscoito. Passados alguns minutos, de novo a mão se aproxima da caixa e lá vai mais um. Só restam dois. Não quero gerar nenhum incidente internacional, por isso enterro-me mais profundamente na cadeira e, antes que se acabem, forço-me a comer o penúltimo. O meu companheiro levanta-se, finalmente chamaram o seu voo e, para minha surpresa, agarra a caixa com as duas mãos, faz uma ligeira vénia e oferece-ma dizendo: You may have it, please. É preciso ter lata! Foi já muito depois, quando chega a minha vez de embarcar, que abro a mala para guardar o livro e vejo lá dentro, intacta, uma caixa de biscoitos. Que embaraço... e fico a ranger os dentes.


Sun Tzu (孫子) (pinyin: Sūn Zǐ) (544 – 496 A.C.)

Dar corda a um cão, como recomenda Sun Zi em “A Arte da Guerra”, não é jogar à defesa, é jogar ao ataque: o cão enleia-se na sua própria corda e, por si só, há-de pôr fim ao seu destino. Tema recorrente na mitologia chinesa esta ideia de que se pode ganhar sem lutar, utilizando até gentileza para com o adversário e de que o ataque é o mais indesejável e o menos aconselhável dos planos, está presente em livros, ditos populares e em muitas histórias de encantar. Por isso um grupo inteiro de seis dos especiosos 36 estratagemas que muitas crianças chinesas ouvem à noite ao deitar é especialmente dedicado a explorar tácticas que evitam o ataque e minimizam a exposição. São tácticas intemporais do Oriente de que relevamos ensinamentos imediatos para a nossa situação e muito podem ajudar a negociação e a gestão e até a mim naquela sala de aeroporto.

Ao contrário de outros livros conhecidos da literatura chinesa, os 36 estratagemas não têm um autor único. São antes uma colectânea de contribuições de líderes militares, políticos, escritores, filósofos e de pessoas comuns, elaboradas e aperfeiçoadas ao longo de cinco mil anos de guerras, de golpes de estado, de intrigas, de inovações económicas e tecnológicas. Têm importância prática para quem quer que se interesse pela dinâmica da história, da política, dos negócios ou das relações humanas. Em particular o 16º estratagema recomenda: “Apanha o inimigo dando-lhe corda, deixando-o escapar” e existem inúmeras histórias que ilustram esta técnica. Há muitos anos atrás, na época dos Três Reinos (220 – 280), o marquês Zhi Bo exigiu que um dos seus nobres, Wei Huan Zi, lhe desse as suas terras. Wei procurou aconselhar-se com um amigo que lhe disse: “Deves dar-lhas. O marquês é de uma ganância insaciável. Se lhe deres as tuas terras, o seu apetite aumentará e todos os nobres se irão juntar para o combater”. Wei seguiu o conselho e foi o que aconteceu: os nobres acabaram por se apoderar das terras do marquês que dividiram entre si para benefício de Wei.

Mapa dos Três Reinos

O mesmo estratagema foi utilizado por Mao Zedong em 1936 quando a China se encontrava no meio de uma luta de resistência frente à ocupação do Japão. Com Chiang Kai-shek, o seu maior inimigo interno, prisioneiro dos seus próprios generais, Mao negociou a sua libertação para criarem uma frente unida contra o Japão. Expulsos os japoneses retomou a guerra civil e dentro de poucos anos Mao dominava todo o país. “Dar para tirar”, foi a expressão que ele próprio utilizou. A sensação de liberdade leva a que o adversário não tome medidas radicais ou inesperadas, a que diminua a resistência e torne mais fácil, e com menos meios, o ataque. Em muitos casos o ataque não se recomenda porque nos expõe directamente à fúria do adversário e nos sujeita a perdas maiores.

Também existem exemplos ocidentais da utilização desta estratégia. Lembram-se quando a Coca-Cola decidiu combater a Pepsi dando um sabor mais açucarado à sua fórmula? Em breve os consumidores se revoltaram exigindo o regresso do sabor clássico ao que, claro, a Coca Cola acedeu. Em resultado, não só aumentou as suas vendas como também as dos produtos açucarados que entretanto criara. A empresa “rendeu-se” aos consumidores para mais tarde os “apanhar”. A rendição aparente pode de facto ser uma vitória, mas para que isso aconteça é necessário que preparemos o terreno psicológico de forma a que o alvo da estratégia seja induzido a atribuir valor à sua própria rendição.

“Relaxa e deixa que o inimigo se canse” é outra versão deste estratagema muito utilizada pelos chineses nas suas negociações com os ocidentais, mas no seu conjunto, os 36 estratagemas ensinam uma nova forma de pensar e de compreender o comportamento dos outros, essencial em qualquer negociação. Um a um proporcionam uma oportunidade de contar uma ou muitas histórias. Contar histórias é a forma mais poderosa de comunicar porque exige da parte de quem nos lê uma data de imaginação. Se as circunstâncias o permitirem, eu hei-de contar-vos mais histórias.

Virgínia Trigo
ISCTE Business School

6/18/2010

CRÓNICAS DA CHINA de Virgínia Trigo - 'Negociar na China'

Quando me visitou pela primeira vez no ISCTE o Sr. Souza tinha acabado de ler o meu livro “Como negociar na China?”. Achara-o útil, disse-me, e tinha um conselho a pedir-me. Industrial do Norte o seu primeiro contacto com a China já vinha dos anos 70, de uma feira que visitara num país de Leste e onde se deixara encantar por uns ferros de engomar revestidos a teflon. O produto era ainda uma relativa novidade, mas o Sr. Souza experimentou um exemplar – para que não restassem dúvidas disseram-lhe até que o trouxesse para casa – e o produto era bom e, claro, o preço imbatível. Movendo montanhas, obstáculo atrás de obstáculo – já podem ver, naquela altura – o Sr. Souza encomendou logo um contentor e pôs os ferros à venda. Foi então que a desgraça aconteceu: um após o outro os ferros começaram a ser devolvidos. Com o aquecimento, o teflon derretia e agarrava-se à roupa danificando-a. Entre as reclamações dos clientes e o silêncio obstinado do vendedor de quem nunca recebeu uma única palavra, o Sr. Souza retirou os ferros do mercado e jurou, disse-me que jurou, nunca mais querer ter nada a ver com a China.

Mas veio entretanto a política de abertura, a invasão do mercado por produtos chineses – cada vez melhores e cada vez mais baratos – a entrada na Organização Mundial do Comércio, a China sempre na televisão e nos jornais, uma China séria e responsável. Impressionado, já sem ressentimentos, o Sr. Souza foi à China. E era precisamente sobre essa viagem que me queria falar. Sentou-se na minha frente, os dedos da sua mão direita brincando durante momentos com o relógio do seu braço esquerdo. Depois, já com os cotovelos sobre a secretária exclamou: “Aquilo é gente muito complicada”. Antes não fosse, mas os desejos não são cavalos que possamos cavalgar através dos nossos sonhos.

Depois da visita o seu desejo era bem simples, apenas encetar uma relação comercial, do interesse de ambas as partes. Sim, já tinha visitado a empresa, a empresa era grande, não sabia se era estatal, na realidade não sabia bem o que era, mas tinha muita gente a trabalhar e até conhecia uma pessoa em Xangai que talvez fosse director nesta fábrica de Cantão, mas vendo bem talvez não. Há mais de um ano que trocava correspondência, a menina Xu até sabia inglês se bem que não se pudesse dizer que aquilo era mesmo inglês pois a maior parte das vezes não se entendia. Veja bem o que estamos para aqui a escrever, como vamos sair disto? Na folha de papel que me estendeu o Sr. Souza tinha mandado transcrever a mais recente troca de emails que durava há já três meses:

“Cara Mna. Xu, gostaria de agendar uma reunião consigo, nos V/ escritórios em Guangzhou, para trocarmos ideias, com vista ao desenvolvimento das vendas e das boas relações, entre ambas as companhias. Sugiro os dias 18 e 19, a uma hora mais conveniente para si”.

“Caro Sr., em relação à sua visita, sugerimos que nos visite a 18 ou 19 a uma hora mais conveniente para si. Depois, pode seguir para Portugal, via Hong Kong. Ficamos a aguardar a S/ breve resposta. Obrigado”.

“Cara Mna. Xu, pedimos o favor de nos informar qual a hora mais conveniente para si, para a realização da reunião no dia 18”.

“Caro Sr., a sua visita pode ser 18 ou 19 a uma hora mais conveniente para si. Depois pode seguir para Portugal, via Hong Kong. Se tiver alguma questão, por favor, informe-nos”.

O que é que eles queriam? Porque rodeavam permanentemente o assunto sem dar uma resposta directa? E porque o mandavam seguir logo para Portugal sem que o tivesse perguntado? Era como se a menina Xu estivesse num mundo e o Sr. Souza noutro e ambos (ou um deles?) estivessem a tentar lançar uma ponte ou a furar uma barreira. Sabendo que só as árvores, os animais e as aves dizem verdades totais pois não têm o poder da invenção, desenhámos, o Sr. Souza e eu, uma estratégia para conseguir esta visita. Finalmente, ele foi de novo à China.

Xangai

Entretanto o Eng. Torres, um empresário de Moçambique que conheço, interessou-se há cerca de um ano também pela China. Talvez porque desconhecia em absoluto o país resolveu seguir o meu conselho: não encetar relações comerciais directamente com nenhuma empresa chinesa e utilizar antes os serviços da sua embaixada. Os protocolos que já estabeleceu com um parceiro chinês tiveram a chancela da embaixada e assim, ao mais alto nível, a relação desenrolou-se célere. Agora a preocupação do Eng. Torres não é a existência de negócios com a China, mas antes se o país vai ou não valorizar o renmimbi.

O Sr. Souza regressou na semana passada exausto ainda da sua incursão: muita gente, muito tempo, muito espaço. Imagine-se que o Sr. Souza viajou de Pequim a Zhengzhou e viu – experimentou – o que nunca imaginara ter visto: um autocarro só com beliches. Felizmente coube-lhe a cama de baixo. Entrou no autocarro de sapatos na mão e, com os outros 39 viajantes, preparou-se para enfrentar a viagem de 12 horas. “Diz no seu livro que o Confúcio – não foi? – disse que um homem sincero não se aproveita de um quarto escuro, mas olhe que eles lá não ligam muito a isso.” Contei-lhe do Eng. Torres. O Sr. Souza olhou-me com olhos que, tais como os do Sr. Ventura de Miguel Torga, já tinham visto a China, e perguntou-me: “Mas você acha que eles na nossa embaixada também fazem isso?” Eu não sei.

Virgínia Trigo
ISCTE Business School

5/07/2010

CRÓNICAS DA CHINA de Virgínia Trigo - 'O Súbito Interesse nos Pastéis de Nata'




Esta é a história de como, no curto espaço de uma década, o pastel de nata saltou do balcão pequeno e escuso de uma pastelaria na ilha de Coloane em Macau para o Kentucky Fried Chicken onde, ao lado da figura sorridente do coronel Sanders, servido com um ice coffee, faz hoje as delícias de todo o Sudeste Asiático. Tudo começou em 1989 numa altura em que um conhecido cozinheiro português se deslocava regularmente ao Hotel Hyatt, na Taipa em Macau, para promover festivais de comida portuguesa. Uma iguaria obrigatória era, claro, o pastel de nata. Por ele se interessou um australiano residente em Macau há já vários anos, farmacêutico de profissão e que após uma tentativa falhada de abrir uma farmácia no Território acabara a trabalhar no casino do hotel. Durante as estadas do chefe português, Andrew não parava de o importunar. E como se consegue esta massa estaladiça de mil folhas? E este creme rico e saboroso? Com uma informação daqui, outra dacolá e o gosto pela experimentação da sua prática farmacêutica, em breve Andrew estava pronto para mudar de vida. Abriu uma pequena pastelaria no canto de um largo em Coloane a que chamou Andrew’s e ali mesmo, apenas com um balcão, sem uma única mesa à qual nos pudéssemos sentar, começou uma gloriosa história de sucesso.

Os pastéis de Andrew não eram bem os ‘nossos’. Ele adaptara-os ao gosto asiático, eram maiores, a massa mais pesada, o recheio mais doce e enjoativo, mas chamara-lhes Portuguese Egg Tarts ou, em cantonense, Portuguese Dan Tat, servia-os quentes e cheios de canela. Aos domingos os turistas de Hong Kong faziam filas para os comprar. Diz-se que um dia um cliente mais entusiasta encomendou nada menos do que 150 dúzias e Macau tornou-se de repente demasiado pequeno para guardar tal segredo. Foi aberta uma filial em Hong Kong, igualmente pequena e escusa, igualmente assediada por uma enorme fila de clientes que ainda mais se adensou quando foi vista e fotografada em penosa espera uma célebre actriz de cinema que apenas queria comprar meia dúzia. O pastel de nata tornou-se companhia obrigatória do chá das 5 em Hong Kong, objecto de troca de presentes e adoçou muitas tardes ásperas nos escritórios das torres de vidro dos especialistas em alta finança da cidade. Em Macau todos queriam aprender a fazê-los, uma espécie de direito moral, dadas as ligações antigas a Lisboa.

Foi neste clima de euforia que um dia recebi um telefonema de alguém que não conhecia, mas que se apresentou como familiar de uma amiga e disse ser chinês de Hong Kong residente no Canadá. Convidava-me para almoçar e queria falar-me de um assunto de interesse comum. Aceitei, incapaz de resistir à mais leve curiosidade e foi assim que me vi no reservado de um primeiro andar de um restaurante na zona mais densamente povoada de Macau. Depois de uma introdução longa em que, um a um, foram consumidos os seis primeiros pratos de uma refeição chinesa, o meu anfitrião confessou-me que, sabendo das minhas ligações a Portugal, visto que eu era portuguesa, o seu desejo era propor-me um negócio de fabricação das famosas Portuguese Egg Tarts, as verdadeiras – nem eu poderia produzir outras, sendo portuguesa – que pudéssemos depois, com legitimidade, introduzir na China. Explicou-me todos os pormenores do negócio e apresentou números: para já milhares e depois milhões de chineses se iriam deliciar com as tartes. Adivinhando alguma relutância da minha parte, o meu interlocutor não hesitou em recorrer à simbologia chinesa, invocando a nossa amizade e colaboração futuras como a imagem de um rio deslizando entre duas montanhas, fertilizando as planícies por onde corre e desaguando numa placidez dourada, no sítio exacto onde bebe o dragão.



Mas por essa altura já Andrew tinha vendido a fórmula do Portuguese Dan Tat ao Kentucky Fried Chicken e este entrara em força em Hong Kong e Taiwan e mais tarde em toda a China. “A febre dos Portuguese egg tart varre a cidade de Taipei” diz o Taiwan Journal de 9 de Novembro de 1998 e acrescenta existirem sinais por todo o lado desde as longas filas nas pastelarias do centro, aos anúncios de parede, à escassez de ovos nos produtores locais. O jornal informa que, para atrair clientes, até uma loja de venda de computadores havia instalado um armário de vidro sobre o balcão com as famosas tartes. Quando a KFC introduziu os pastéis de nata já estes eram conhecidos em Taiwan, mas a sua presença na cadeia contribuiu para aumentar a febre e nem mesmo ela estava preparada para tamanho êxito. O jornal dá conta de muitos oportunistas que, depois de esperarem mais de três ou quatro horas numa fila, os compram às centenas para montarem uma banca logo ali ao virar da esquina e os venderem pelo dobro do preço. Para evitar semelhante comportamento muitas lojas limitaram o número de unidades vendidas a cada cliente o que ainda mais exacerbou o desejo de as comprar. Um representante da KFC confessou-se admirado com tanto sucesso e de certo modo apreensivo pois em regra tamanho alvoroço no início poderá prejudicar o produto no futuro.

Ainda antes do virar do século o pastel de nata já era vendido um pouco por todo o lado na China. Embora muito do entusiasmo inicial se tenha perdido, lembrei-me desta história ao deparar recentemente em Xi’an, no coração da China, com os famosos pastéis em evidência na montra de uma pastelaria da moda. Ao lado deste objecto de eleição estavam uma magnífica embalagem cilíndrica especialmente concebida para 8 unidades, o número da sorte, e um cartaz de fundo dourado e letras vermelhas onde se lia em chinês e inglês: “Portuguese egg tarts, o gosto internacional é mundialmente famoso”. O Portuguese egg tart faz o seu caminho.

Virgínia Trigo