8/02/2010

CRONICAS DA CHINA de Virginia Trigo - 'Dar Corda a um Cão'

Nesta sala de aeroporto acaba de passar-se uma coisa engraçada. Eu estou com o meu livro, um café e uma caixa de biscoitos na mesa de apoio à esquerda da minha cadeira e eis senão quando o meu companheiro de espera, um senhor chinês de raros cabelos brancos, estende uma mão silenciosa e subrepticiamente me rouba um deles. Olho-o com alguma indignação. O rosto era plácido, com uma certa sabedoria nos olhos como se de facto vissem o que estavam a olhar, mas ainda assim aproximo a caixa um pouco mais para o meu lado retirando eu própria ostensivamente um biscoito. Passados alguns minutos, de novo a mão se aproxima da caixa e lá vai mais um. Só restam dois. Não quero gerar nenhum incidente internacional, por isso enterro-me mais profundamente na cadeira e, antes que se acabem, forço-me a comer o penúltimo. O meu companheiro levanta-se, finalmente chamaram o seu voo e, para minha surpresa, agarra a caixa com as duas mãos, faz uma ligeira vénia e oferece-ma dizendo: You may have it, please. É preciso ter lata! Foi já muito depois, quando chega a minha vez de embarcar, que abro a mala para guardar o livro e vejo lá dentro, intacta, uma caixa de biscoitos. Que embaraço... e fico a ranger os dentes.


Sun Tzu (孫子) (pinyin: Sūn Zǐ) (544 – 496 A.C.)

Dar corda a um cão, como recomenda Sun Zi em “A Arte da Guerra”, não é jogar à defesa, é jogar ao ataque: o cão enleia-se na sua própria corda e, por si só, há-de pôr fim ao seu destino. Tema recorrente na mitologia chinesa esta ideia de que se pode ganhar sem lutar, utilizando até gentileza para com o adversário e de que o ataque é o mais indesejável e o menos aconselhável dos planos, está presente em livros, ditos populares e em muitas histórias de encantar. Por isso um grupo inteiro de seis dos especiosos 36 estratagemas que muitas crianças chinesas ouvem à noite ao deitar é especialmente dedicado a explorar tácticas que evitam o ataque e minimizam a exposição. São tácticas intemporais do Oriente de que relevamos ensinamentos imediatos para a nossa situação e muito podem ajudar a negociação e a gestão e até a mim naquela sala de aeroporto.

Ao contrário de outros livros conhecidos da literatura chinesa, os 36 estratagemas não têm um autor único. São antes uma colectânea de contribuições de líderes militares, políticos, escritores, filósofos e de pessoas comuns, elaboradas e aperfeiçoadas ao longo de cinco mil anos de guerras, de golpes de estado, de intrigas, de inovações económicas e tecnológicas. Têm importância prática para quem quer que se interesse pela dinâmica da história, da política, dos negócios ou das relações humanas. Em particular o 16º estratagema recomenda: “Apanha o inimigo dando-lhe corda, deixando-o escapar” e existem inúmeras histórias que ilustram esta técnica. Há muitos anos atrás, na época dos Três Reinos (220 – 280), o marquês Zhi Bo exigiu que um dos seus nobres, Wei Huan Zi, lhe desse as suas terras. Wei procurou aconselhar-se com um amigo que lhe disse: “Deves dar-lhas. O marquês é de uma ganância insaciável. Se lhe deres as tuas terras, o seu apetite aumentará e todos os nobres se irão juntar para o combater”. Wei seguiu o conselho e foi o que aconteceu: os nobres acabaram por se apoderar das terras do marquês que dividiram entre si para benefício de Wei.

Mapa dos Três Reinos

O mesmo estratagema foi utilizado por Mao Zedong em 1936 quando a China se encontrava no meio de uma luta de resistência frente à ocupação do Japão. Com Chiang Kai-shek, o seu maior inimigo interno, prisioneiro dos seus próprios generais, Mao negociou a sua libertação para criarem uma frente unida contra o Japão. Expulsos os japoneses retomou a guerra civil e dentro de poucos anos Mao dominava todo o país. “Dar para tirar”, foi a expressão que ele próprio utilizou. A sensação de liberdade leva a que o adversário não tome medidas radicais ou inesperadas, a que diminua a resistência e torne mais fácil, e com menos meios, o ataque. Em muitos casos o ataque não se recomenda porque nos expõe directamente à fúria do adversário e nos sujeita a perdas maiores.

Também existem exemplos ocidentais da utilização desta estratégia. Lembram-se quando a Coca-Cola decidiu combater a Pepsi dando um sabor mais açucarado à sua fórmula? Em breve os consumidores se revoltaram exigindo o regresso do sabor clássico ao que, claro, a Coca Cola acedeu. Em resultado, não só aumentou as suas vendas como também as dos produtos açucarados que entretanto criara. A empresa “rendeu-se” aos consumidores para mais tarde os “apanhar”. A rendição aparente pode de facto ser uma vitória, mas para que isso aconteça é necessário que preparemos o terreno psicológico de forma a que o alvo da estratégia seja induzido a atribuir valor à sua própria rendição.

“Relaxa e deixa que o inimigo se canse” é outra versão deste estratagema muito utilizada pelos chineses nas suas negociações com os ocidentais, mas no seu conjunto, os 36 estratagemas ensinam uma nova forma de pensar e de compreender o comportamento dos outros, essencial em qualquer negociação. Um a um proporcionam uma oportunidade de contar uma ou muitas histórias. Contar histórias é a forma mais poderosa de comunicar porque exige da parte de quem nos lê uma data de imaginação. Se as circunstâncias o permitirem, eu hei-de contar-vos mais histórias.

Virgínia Trigo
ISCTE Business School

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