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6/02/2010

CRÓNICAS COISAS DA VIDA de Virgínia Trigo - O “DESENRASCANÇO”

 Kea

Não é uma palavra bonita, eu sei. De resto, assim substantivada, nem sequer existe no dicionário embora toda a gente a diga. Por mais que procure, não consigo encontrar nenhum sinónimo que exactamente transmita da mesma forma, com igual comunhão de significado, esta nossa capacidade colectiva, afinal uma habilidade para resolvermos, com razoável eficácia, situações difíceis quase sempre em casos extremos. Quando penso no “desenrascanço” vêm-me invariavelmente duas imagens à cabeça: há muitos anos atrás, na Madeira, uma equipa de filmagens francesa filma junto ao mar quando, inadvertidamente, a câmara cai à água. Todos se olham uns aos outros sem saber o que fazer até que o assistente de imagem, um jovem português, a apanha e a desmonta limpando as peças uma a uma, voltando-a a montar outra vez. A partir desse dia e enquanto durou a aura, ele passou a ser considerado a pessoa mais importante da equipa. Na outra imagem eu estou em Estocolmo com um professor sueco que amavelmente acedeu a conduzir-me ao aeroporto dado o meu atraso para apanhar um voo. Entramos no carro, ele liga o motor, agarra no volante e ouvimos um barulho seco “tac”: o volante estava encravado, nem para a direita, nem para a esquerda. E agora? Num impulso eu dou duas curtas e rápidas guinadas ao volante e ele liberta-se. O professor olhou para mim como se eu fosse a pessoa mais inteligente deste mundo. Como não sou especialmente hábil em questões de mecânica só posso atribuir aquela minha súbita inspiração à capacidade que partilho com os meus compatriotas de resolver um problema in extremis, ou seja, de me “desenrascar”.

Este tem sido um segredo só nosso, alojado algures numa camada muito íntima da nossa cultura, do qual não falamos, quando muito falamos baixinho, entre risos subtis e até um pouco envergonhados. Mas eis que o relatório recente de uma Câmara de Comércio de um país estrangeiro vem expor este nosso segredo e se põe a elaborar sobre ele: que o “desenrascanço” está mal aproveitado; que se trata de uma virtude colectiva essencial que pode e deve ser conceptualizada e até cimentada como base de resolução não só dos nossos problemas imediatos mas gerais e futuros; que sobre ele devem ser feitos estudos, teses doutorais, extraídos conceitos. Em suma, aconselham-nos a, muito para além de resultado, estudarmos e pensarmos sobre o processo que permite o “desenrascanço” com o fim de o melhorar, de o tornar sustentável e de o integrar na nossa forma normal – e não apenas in extremis – de fazer as coisas.

Como se não bastasse, por circunstâncias da vida, passei a fazer parte de uma família neozelandesa e descubro, no outro lado do mundo, um povo tão “desenrascado” como nós. Mais até, se isso me é permitido: os neozelandeses não só são eles próprios “desenrascados” como estendem essa característica ao seu reino animal como pude comprovar na reserva natural da ilha de Kapiti onde um papagaio autóctone, o “kea”, me abriu sub-repticiamente a mala para me roubar seis quadrados de chocolate. Foi apanhado em flagrante, mas já tarde, quando abandonava o local do crime.
'mentalidade de 8mm'

Não conhecendo a palavra “desenrascado”, os neozelandeses desculpam-se dizendo que uma pequena nação isolada do resto do mundo tem por força de ser engenhosa e lá está: a Nova Zelândia é a segunda nação do mundo em patentes per capita, logo a seguir à Suíça. Ser engenhoso é semelhante, e contudo diferente, a ser “desenrascado”. O engenho pode ser explicado em dois factores simples: (1) ser capaz de pensar por si próprio; e, muito importante, (2) persistir até se obter o resultado desejado. Dizem também que têm uma “mentalidade 8 mm”, por analogia com o arame de 8mm que serve para reparar tudo o que necessita de resistência (portas, cercas...). Habituados a poucos recursos, mas rodeados de paisagens lindas, os neozelandeses desenvolveram um sentido estético minimalista, tudo simplificando através de uma organização quase obsessiva, desde a decoração das casas até à limpeza e ao arranjo das ruas e dos (muitos) jardins. Talvez por tudo isso não se vejam na Nova Zelândia nem casas muito pobres nem casas muito ricas; nem pedintes na rua; nem paredes vandalizadas nas cidades; nem lojas chinesas a abarrotar de quinquilharia. Isto apesar de a comunidade chinesa representar 2,6% da população e em Portugal cerca de 0,15%.

Ernest Rutherford
Como símbolo deste engenho guardo a memória de uma cerveja que em vez da tradicional acumulação de medalhas de ouro sobre o rótulo, simplesmente anunciava: “Já perdemos conta às medalhas que ganhámos”. “Na Nova Zelândia, como não temos dinheiro, temos de pensar”, disse Ernest Rutherford, um neozelandês que ganhou o prémio Nobel da química em 1908. E estas palavras ficaram a dançar na minha cabeça durante dias seguidos.


Virgínia Trigo
ISCTE Business School

5/26/2010

CRÓNICAS COISAS DA VIDA de Virgínia Trigo - 'Bem-vindos à Babilónia'



Com o ar mais sério deste mundo, Juan, um estudante internacional da disciplina de Empreendedorismo no ISCTE, comunicou-me que o seu projecto de grupo iria ser um “topless bar with snakes” (um bar topless com cobras). O que é que eu achava? “A topless bar with snakes? Aqui, em Lisboa?” O meu ar deve ter sido de uma tal consternação que Juan respondeu com uma breve tremura na voz: “Yes, a topless bar with snakes”. Onde iria ele arranjar as cobras? Por breves momentos, ambos ficámos a olhar um para o outro até que, duvidando do seu acento espanhol, me lembrei de lhe pedir que escrevesse o que me estava a dizer. Juan escreveu: “a tapas bar with snacks” (um bar de tapas com snacks). Esta prática de pedir a alguém que me escreva o que está a dizer quando uma ideia me parece demasiado absurda tornou-se uma verdadeira necessidade depois das primeiras discussões que tive na China com origem neste tipo de mal-entendidos. Logo em 1989 lembro-me de ter entrado numa loja em Hong Kong para perguntar o preço de um casaco: “São mil dólares mas para si, Missie, faço-lhe um desconto de ‘fifty’ (50)%”. Nada mau pensei, vou levá-lo. Só na altura de pagar me apercebi que o desconto não tinha sido de 50 mas de 15% (fifteen): os dois valores eram pronunciados de uma forma exactamente igual, não só por aquela empregada, mas também, como depois haveria de descobrir, pela maior parte das pessoas naquela zona do mundo. Ficámos algum tempo a discutir, mas de nada me valeu e tive de renunciar ao casaco e ao desconto.

Noutra altura, num quarto de hotel em Cantão, tive necessidade de pedir um adaptador para um determinado equipamento eléctrico. Fi-lo por telefone, pronunciando com cuidado “an adaptor, please”. Depois de quase uma hora de espera, alguém bateu à porta com alguma ansiedade. Era um homem de bata branca, uma pequena mala na mão, anunciando-me: “I am your doctor, Missie” (sou o médico, minha senhora). Já na noite anterior Eddie, o recepcionista daquele hotel, me havia surpreendido. Pedi-lhe que me acordasse às 6:30 e ele, prestável, respondeu: “Morning call? No problem.” Puxou de uma folha quadriculada, um quadro de dupla entrada com as horas em linha e os números dos quartos em coluna, mas o breve sibilar entre os dentes, acentuando-se à medida que os seus dedos percorriam a folha, anunciava uma desgraça iminente. Olhando a linha onde as horas se cruzavam com os números dos quartos já totalmente preenchida, informou-me com pesar: “I am sorry Missie but we have run out of 6:30” (lamento, mas as 6:30 estão esgotadas). Não duvidei do pesar de Eddie. Afinal fora ele que, horas antes, ao levar-me a mala até ao quarto, esforçando-se no seu melhor inglês me dissera: “If you are desperate for something, do not hesitate to ask me” (se estiver desesperada por algo, não hesite em pedir-me).

Por essa altura andava eu a fazer entrevistas a recém-empresários num parque industrial de Cantão e, nas nossas conversas, eram frequentes os mal-entendidos sobretudo quando se tratava de valores. Eu conhecia a dimensão chinesa mas, mesmo assim, os números que me diziam eram de todo improváveis. Foi então que me apercebi das diferenças entre as unidades de contagem: a nossa unidade de contagem é o milhar (1000) enquanto que na China é o wan (10000). Só depois disso, forçando-me e forçando os meus interlocutores a escrevermos os números sem separação decimal – prática que recomendo a quem quiser negociar ou estabelecer qualquer forma de interacção na China – é que os valores começaram a fazer sentido.

De entre as maiores recompensas que podemos ter ao viver no estrangeiro está este sentimento estimulante de satisfação quando conseguimos resolver os pequenos mistérios da vida local e a China contribui com mais do que a sua quota parte para nos proporcionar esse prazer. Foi o que relembrei ainda em Julho deste ano quando, num restaurante de Xian, um solícito empregado me perguntou o que eu queria beber. “Pode ser uma cerveja”, respondi. “Grande ou pequena?” “Pequena por favor”. “Desculpe Missie, mas só temos grandes”, foi a resposta imediata. Foram precisamente os meus alunos chineses que me indicaram o caminho da escrita ao vê-los resolver as suas interpretações dissonantes desenhando um ideograma com um dedo na palma da outra mão, hábito que podemos observar frequentemente na China. Mas, como vimos no caso de Juan, numa Europa sem fronteiras, não é preciso ir tão longe. São as diferentes culturas que vêm ter connosco e assim alargam os nossos horizontes, expondo-nos a novas formas de pensar, a outros pontos de vista, formas de arte, actividades sociais e padrões de comportamento que dantes estávamos longe de supor que existissem. “Pode-se aprender muito quando se deixa Ítaca” disse Omero em tempos idos.

Virgínia Trigo

5/19/2010

CRÓNICAS COISAS DA VIDA de Virgínia Trigo - 'Sete Dias em Teerão'


Faz agora dez anos eu estive sete dias em Teerão. Não fosse esta espera de mais de três horas nesta sala de aeroporto e a memória desse tempo teria continuado algures num limbo entre o cérebro e o coração. Mas assim sendo, levanto-me e vou à procura de um livro e vejo este. Na capa estão duas mulheres de lenço preto na cabeça, curvadas sobre as suas próprias mãos. Do seu rosto vem toda a atenção. O que fazem? Lêem às escondidas um livro em Teerão. Também eu já li às escondidas em Teerão, não a Lolita de Nabokov como fazem estas mulheres, mas algo de igualmente proibido e subversivo: eu li uma Elle em Teerão.

Somos um grupo de 40 pessoas dos mais diversos sítios da Ásia trazidas pelo ESCAP(1),  um organismo das Nações Unidas. Somos presidentes ou responsáveis de escolas de turismo e hotelaria da região e já há muito que o Sr. V., o director para o turismo do ESCAP, manobrava nos bastidores para conseguir esta reunião. O Sr. V. tinha um sonho: conseguir unir as escolas de turismo da Ásia numa rede de intercâmbio, uma espécie de Erasmus na manta de retalhos que é a região. E queria começar exactamente por onde a Ásia começa: pelo Irão. Nunca nenhum representante do Irão fora às reuniões preparatórias, mas ainda assim, com a tenacidade de quem se aproxima da reforma e quer a todo o custo deixar obra feita, o Sr. V. conseguiu levar-nos a Teerão. Por isso aqui estamos, as cinco mulheres da delegação devidamente avisadas da nossa aparência: vestes largas, compridas e escuras, sapatos fechados, lenço na cabeça, maquilhagem nem pensar.

Os meus braços revelam-se desde logo uma preocupação: as mangas são afinal demasiado curtas e os dez centímetros de pele que separam o meu punho do início dos dedos são bastante chocantes e não consigo deixar de os olhar. Agarro as mangas com as pontas dos dedos e assim fico até que me entusiasmo a falar e retomo este mau hábito de arregaçar as mangas antes de fazer avançar um argumento. Atento, o guardião que me vigia manda-me puxá-las para baixo. Peço desculpa e obedeço.


O meu quarto de hotel padece das suas próprias queixas e, olhando pela janela, vejo que o verão chegou à cidade e às montanhas que dali se avistam muito antes de nós. Tudo é castanho e pó. Este livro fala de jardins e árvores em Teerão e garante o verde daquelas montanhas numa qualquer estação do ano, mas o único verde na minha memória é o do fato de caqui deste homem que incessantemente canta na televisão. No segundo dia as minhas duas acompanhantes, Omid e Zarrin, nos seus 20 anos, querem visitar o meu quarto. Vamos. Enquanto caminhamos pelos corredores e espaços públicos do hotel fazemo-lo em silêncio ou falando baixinho como é nossa condição, mas assim que a porta se fecha por detrás de nós elas arrancam os lenços e despem as batas: têm jeans e t-shirts, são jovens como outras quaisquer. Que não faz mal, asseguram-me e insistem em ver o meu cabelo. Admiram-se como o posso ter tão curto, será a moda? Vou então à minha mala e tiro de lá a Elle, minha companheira de avião, ajoelhamo-nos quase ao mesmo tempo e começamos a folheá-la. Nessa noite chegamos apenas à página 10. Digo-lhes para a levarem, que fiquem com ela, mas recusam-se, têm medo, por isso volto a guardá-la, dobrada naquela página que Zarrin pediu, disfarçada por entre a roupa.

Assim é o nosso ritual diário. Se pudessem ver-nos... Todas as noites começamos por nos maquilhar acentuando bem os lábios, a parte mais infame do nosso rosto, depois lemos a revista de joelhos, a seguir dançamos, sim dançamos, os braços levantados como em Zorba, o Grego, por fim lavamos a cara e elas vão-se embora com um sorriso tão cúmplice que até pode ser perigoso. No quinto dia o Sr. V. quer chegar a uma resolução: quem organizar a próxima reunião ficará presidente da rede. Candidato-me mas há mais três candidaturas: a Índia, a Tailândia e Hong Kong. Como não consegue chegar ao consenso que sempre procura, o Sr. V. sugere que cada um de nós defenda a sua posição, depois será a votação. Levanto-me para falar e, maldição, arregaço as mangas. O guardião avança para mim, mas aquele era um momento temerário, levanto o braço esquerdo e faço-lhe sinal para parar. E foi com uma mão erguida e a outra em cima da mesa que durante dez minutos defendi as vantagens de Macau e da minha escola e me tornei durante quatro anos na primeira presidente da rede APETIT(2) .

Esta é a nossa última noite, Omid e Zarrin estão orgulhosas de mim e já passámos por uma última provação. Zarrin acedeu hoje ao meu insistente pedido para sairmos fora do hotel e comprar um tapete. Fizemo-lo de cabeça baixa e muito depressa, mas eu senti o desconforto do suspense e que as piores eventualidades pairavam no ar. É esse tapete, dependurado na parede da minha sala, à frente do qual eu hoje me passeio e vejo uma janela que se abre e fecha como Zarrin me ensinou. Um tapete mágico, grita ela atravessando-o com o seu sorriso luminoso para me lembrar que nunca, nem nos meus tempos de adolescente num colégio interno, eu experimentei tamanha solidariedade e cumplicidade, sentimentos tão profundamente humanos como naqueles sete dias em Teerão.

Vírgínia Trigo

(1) Economic and Social Commission for Asia and the Pacific
(2) Asia-Pacific Education and Training Institutions in Tourism