5/19/2010

CRÓNICAS COISAS DA VIDA de Virgínia Trigo - 'Sete Dias em Teerão'


Faz agora dez anos eu estive sete dias em Teerão. Não fosse esta espera de mais de três horas nesta sala de aeroporto e a memória desse tempo teria continuado algures num limbo entre o cérebro e o coração. Mas assim sendo, levanto-me e vou à procura de um livro e vejo este. Na capa estão duas mulheres de lenço preto na cabeça, curvadas sobre as suas próprias mãos. Do seu rosto vem toda a atenção. O que fazem? Lêem às escondidas um livro em Teerão. Também eu já li às escondidas em Teerão, não a Lolita de Nabokov como fazem estas mulheres, mas algo de igualmente proibido e subversivo: eu li uma Elle em Teerão.

Somos um grupo de 40 pessoas dos mais diversos sítios da Ásia trazidas pelo ESCAP(1),  um organismo das Nações Unidas. Somos presidentes ou responsáveis de escolas de turismo e hotelaria da região e já há muito que o Sr. V., o director para o turismo do ESCAP, manobrava nos bastidores para conseguir esta reunião. O Sr. V. tinha um sonho: conseguir unir as escolas de turismo da Ásia numa rede de intercâmbio, uma espécie de Erasmus na manta de retalhos que é a região. E queria começar exactamente por onde a Ásia começa: pelo Irão. Nunca nenhum representante do Irão fora às reuniões preparatórias, mas ainda assim, com a tenacidade de quem se aproxima da reforma e quer a todo o custo deixar obra feita, o Sr. V. conseguiu levar-nos a Teerão. Por isso aqui estamos, as cinco mulheres da delegação devidamente avisadas da nossa aparência: vestes largas, compridas e escuras, sapatos fechados, lenço na cabeça, maquilhagem nem pensar.

Os meus braços revelam-se desde logo uma preocupação: as mangas são afinal demasiado curtas e os dez centímetros de pele que separam o meu punho do início dos dedos são bastante chocantes e não consigo deixar de os olhar. Agarro as mangas com as pontas dos dedos e assim fico até que me entusiasmo a falar e retomo este mau hábito de arregaçar as mangas antes de fazer avançar um argumento. Atento, o guardião que me vigia manda-me puxá-las para baixo. Peço desculpa e obedeço.


O meu quarto de hotel padece das suas próprias queixas e, olhando pela janela, vejo que o verão chegou à cidade e às montanhas que dali se avistam muito antes de nós. Tudo é castanho e pó. Este livro fala de jardins e árvores em Teerão e garante o verde daquelas montanhas numa qualquer estação do ano, mas o único verde na minha memória é o do fato de caqui deste homem que incessantemente canta na televisão. No segundo dia as minhas duas acompanhantes, Omid e Zarrin, nos seus 20 anos, querem visitar o meu quarto. Vamos. Enquanto caminhamos pelos corredores e espaços públicos do hotel fazemo-lo em silêncio ou falando baixinho como é nossa condição, mas assim que a porta se fecha por detrás de nós elas arrancam os lenços e despem as batas: têm jeans e t-shirts, são jovens como outras quaisquer. Que não faz mal, asseguram-me e insistem em ver o meu cabelo. Admiram-se como o posso ter tão curto, será a moda? Vou então à minha mala e tiro de lá a Elle, minha companheira de avião, ajoelhamo-nos quase ao mesmo tempo e começamos a folheá-la. Nessa noite chegamos apenas à página 10. Digo-lhes para a levarem, que fiquem com ela, mas recusam-se, têm medo, por isso volto a guardá-la, dobrada naquela página que Zarrin pediu, disfarçada por entre a roupa.

Assim é o nosso ritual diário. Se pudessem ver-nos... Todas as noites começamos por nos maquilhar acentuando bem os lábios, a parte mais infame do nosso rosto, depois lemos a revista de joelhos, a seguir dançamos, sim dançamos, os braços levantados como em Zorba, o Grego, por fim lavamos a cara e elas vão-se embora com um sorriso tão cúmplice que até pode ser perigoso. No quinto dia o Sr. V. quer chegar a uma resolução: quem organizar a próxima reunião ficará presidente da rede. Candidato-me mas há mais três candidaturas: a Índia, a Tailândia e Hong Kong. Como não consegue chegar ao consenso que sempre procura, o Sr. V. sugere que cada um de nós defenda a sua posição, depois será a votação. Levanto-me para falar e, maldição, arregaço as mangas. O guardião avança para mim, mas aquele era um momento temerário, levanto o braço esquerdo e faço-lhe sinal para parar. E foi com uma mão erguida e a outra em cima da mesa que durante dez minutos defendi as vantagens de Macau e da minha escola e me tornei durante quatro anos na primeira presidente da rede APETIT(2) .

Esta é a nossa última noite, Omid e Zarrin estão orgulhosas de mim e já passámos por uma última provação. Zarrin acedeu hoje ao meu insistente pedido para sairmos fora do hotel e comprar um tapete. Fizemo-lo de cabeça baixa e muito depressa, mas eu senti o desconforto do suspense e que as piores eventualidades pairavam no ar. É esse tapete, dependurado na parede da minha sala, à frente do qual eu hoje me passeio e vejo uma janela que se abre e fecha como Zarrin me ensinou. Um tapete mágico, grita ela atravessando-o com o seu sorriso luminoso para me lembrar que nunca, nem nos meus tempos de adolescente num colégio interno, eu experimentei tamanha solidariedade e cumplicidade, sentimentos tão profundamente humanos como naqueles sete dias em Teerão.

Vírgínia Trigo

(1) Economic and Social Commission for Asia and the Pacific
(2) Asia-Pacific Education and Training Institutions in Tourism

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