Com o ar mais sério deste mundo, Juan, um estudante internacional da disciplina de Empreendedorismo no ISCTE, comunicou-me que o seu projecto de grupo iria ser um “topless bar with snakes” (um bar topless com cobras). O que é que eu achava? “A topless bar with snakes? Aqui, em Lisboa?” O meu ar deve ter sido de uma tal consternação que Juan respondeu com uma breve tremura na voz: “Yes, a topless bar with snakes”. Onde iria ele arranjar as cobras? Por breves momentos, ambos ficámos a olhar um para o outro até que, duvidando do seu acento espanhol, me lembrei de lhe pedir que escrevesse o que me estava a dizer. Juan escreveu: “a tapas bar with snacks” (um bar de tapas com snacks). Esta prática de pedir a alguém que me escreva o que está a dizer quando uma ideia me parece demasiado absurda tornou-se uma verdadeira necessidade depois das primeiras discussões que tive na China com origem neste tipo de mal-entendidos. Logo em 1989 lembro-me de ter entrado numa loja em Hong Kong para perguntar o preço de um casaco: “São mil dólares mas para si, Missie, faço-lhe um desconto de ‘fifty’ (50)%”. Nada mau pensei, vou levá-lo. Só na altura de pagar me apercebi que o desconto não tinha sido de 50 mas de 15% (fifteen): os dois valores eram pronunciados de uma forma exactamente igual, não só por aquela empregada, mas também, como depois haveria de descobrir, pela maior parte das pessoas naquela zona do mundo. Ficámos algum tempo a discutir, mas de nada me valeu e tive de renunciar ao casaco e ao desconto.
Noutra altura, num quarto de hotel em Cantão, tive necessidade de pedir um adaptador para um determinado equipamento eléctrico. Fi-lo por telefone, pronunciando com cuidado “an adaptor, please”. Depois de quase uma hora de espera, alguém bateu à porta com alguma ansiedade. Era um homem de bata branca, uma pequena mala na mão, anunciando-me: “I am your doctor, Missie” (sou o médico, minha senhora). Já na noite anterior Eddie, o recepcionista daquele hotel, me havia surpreendido. Pedi-lhe que me acordasse às 6:30 e ele, prestável, respondeu: “Morning call? No problem.” Puxou de uma folha quadriculada, um quadro de dupla entrada com as horas em linha e os números dos quartos em coluna, mas o breve sibilar entre os dentes, acentuando-se à medida que os seus dedos percorriam a folha, anunciava uma desgraça iminente. Olhando a linha onde as horas se cruzavam com os números dos quartos já totalmente preenchida, informou-me com pesar: “I am sorry Missie but we have run out of 6:30” (lamento, mas as 6:30 estão esgotadas). Não duvidei do pesar de Eddie. Afinal fora ele que, horas antes, ao levar-me a mala até ao quarto, esforçando-se no seu melhor inglês me dissera: “If you are desperate for something, do not hesitate to ask me” (se estiver desesperada por algo, não hesite em pedir-me).
Por essa altura andava eu a fazer entrevistas a recém-empresários num parque industrial de Cantão e, nas nossas conversas, eram frequentes os mal-entendidos sobretudo quando se tratava de valores. Eu conhecia a dimensão chinesa mas, mesmo assim, os números que me diziam eram de todo improváveis. Foi então que me apercebi das diferenças entre as unidades de contagem: a nossa unidade de contagem é o milhar (1000) enquanto que na China é o wan (10000). Só depois disso, forçando-me e forçando os meus interlocutores a escrevermos os números sem separação decimal – prática que recomendo a quem quiser negociar ou estabelecer qualquer forma de interacção na China – é que os valores começaram a fazer sentido.
De entre as maiores recompensas que podemos ter ao viver no estrangeiro está este sentimento estimulante de satisfação quando conseguimos resolver os pequenos mistérios da vida local e a China contribui com mais do que a sua quota parte para nos proporcionar esse prazer. Foi o que relembrei ainda em Julho deste ano quando, num restaurante de Xian, um solícito empregado me perguntou o que eu queria beber. “Pode ser uma cerveja”, respondi. “Grande ou pequena?” “Pequena por favor”. “Desculpe Missie, mas só temos grandes”, foi a resposta imediata. Foram precisamente os meus alunos chineses que me indicaram o caminho da escrita ao vê-los resolver as suas interpretações dissonantes desenhando um ideograma com um dedo na palma da outra mão, hábito que podemos observar frequentemente na China. Mas, como vimos no caso de Juan, numa Europa sem fronteiras, não é preciso ir tão longe. São as diferentes culturas que vêm ter connosco e assim alargam os nossos horizontes, expondo-nos a novas formas de pensar, a outros pontos de vista, formas de arte, actividades sociais e padrões de comportamento que dantes estávamos longe de supor que existissem. “Pode-se aprender muito quando se deixa Ítaca” disse Omero em tempos idos.
Virgínia Trigo
Noutra altura, num quarto de hotel em Cantão, tive necessidade de pedir um adaptador para um determinado equipamento eléctrico. Fi-lo por telefone, pronunciando com cuidado “an adaptor, please”. Depois de quase uma hora de espera, alguém bateu à porta com alguma ansiedade. Era um homem de bata branca, uma pequena mala na mão, anunciando-me: “I am your doctor, Missie” (sou o médico, minha senhora). Já na noite anterior Eddie, o recepcionista daquele hotel, me havia surpreendido. Pedi-lhe que me acordasse às 6:30 e ele, prestável, respondeu: “Morning call? No problem.” Puxou de uma folha quadriculada, um quadro de dupla entrada com as horas em linha e os números dos quartos em coluna, mas o breve sibilar entre os dentes, acentuando-se à medida que os seus dedos percorriam a folha, anunciava uma desgraça iminente. Olhando a linha onde as horas se cruzavam com os números dos quartos já totalmente preenchida, informou-me com pesar: “I am sorry Missie but we have run out of 6:30” (lamento, mas as 6:30 estão esgotadas). Não duvidei do pesar de Eddie. Afinal fora ele que, horas antes, ao levar-me a mala até ao quarto, esforçando-se no seu melhor inglês me dissera: “If you are desperate for something, do not hesitate to ask me” (se estiver desesperada por algo, não hesite em pedir-me).
Por essa altura andava eu a fazer entrevistas a recém-empresários num parque industrial de Cantão e, nas nossas conversas, eram frequentes os mal-entendidos sobretudo quando se tratava de valores. Eu conhecia a dimensão chinesa mas, mesmo assim, os números que me diziam eram de todo improváveis. Foi então que me apercebi das diferenças entre as unidades de contagem: a nossa unidade de contagem é o milhar (1000) enquanto que na China é o wan (10000). Só depois disso, forçando-me e forçando os meus interlocutores a escrevermos os números sem separação decimal – prática que recomendo a quem quiser negociar ou estabelecer qualquer forma de interacção na China – é que os valores começaram a fazer sentido.
De entre as maiores recompensas que podemos ter ao viver no estrangeiro está este sentimento estimulante de satisfação quando conseguimos resolver os pequenos mistérios da vida local e a China contribui com mais do que a sua quota parte para nos proporcionar esse prazer. Foi o que relembrei ainda em Julho deste ano quando, num restaurante de Xian, um solícito empregado me perguntou o que eu queria beber. “Pode ser uma cerveja”, respondi. “Grande ou pequena?” “Pequena por favor”. “Desculpe Missie, mas só temos grandes”, foi a resposta imediata. Foram precisamente os meus alunos chineses que me indicaram o caminho da escrita ao vê-los resolver as suas interpretações dissonantes desenhando um ideograma com um dedo na palma da outra mão, hábito que podemos observar frequentemente na China. Mas, como vimos no caso de Juan, numa Europa sem fronteiras, não é preciso ir tão longe. São as diferentes culturas que vêm ter connosco e assim alargam os nossos horizontes, expondo-nos a novas formas de pensar, a outros pontos de vista, formas de arte, actividades sociais e padrões de comportamento que dantes estávamos longe de supor que existissem. “Pode-se aprender muito quando se deixa Ítaca” disse Omero em tempos idos.
Virgínia Trigo
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