5/01/2010

CRÓNICAS DE EMPREENDEDORISMO de Virgínia Trigo - 'Isto Aqui Não é Inferno'



“Fiar é obra do diabo e isto aqui não é inferno”. Não fora o ar duro e desconfiado da vendedora de frutas e legumes e eu até teria achado graça à improvisada tabuleta, restos de uma caixa de cartão, com os dizeres em maiúsculas, as letras agarrando-se umas às outras para caberem todas já no fim, assim plantada no meio da fruta. Decidi suavizá-la comprando uma couve portuguesa e meia dúzia de maçãs enquanto perguntava apontando para a tabuleta: “os clientes aqui não pagam é?” Que não pagavam, nem ali nem em lado nenhum informou-me com aspereza. Não são os clientes pequenos, a dona de casa ou o reformado que todos os dias compra uma peça de fruta ou uma couve, esses têm de pagar, mas os grandes, os donos de restaurantes ou afins. Da primeira vez que compram pagam, para nos cativar talvez, mas depois é “passe lá pelo estabelecimento que nós liquidamos isto”. Passamos mas não estão, voltamos vezes sem conta e zangam-se connosco: “eu não lhe disse para vir amanhã?” E seria assim com a praça toda? É por todo o lado, eu não sabia?

Sabia, pois. Nas minhas aulas de Empreendedorismo no ISCTE, os alunos de mestrado com experiência empreendedora confrontam-me com isso todas as aulas: “não podemos ‘fiar’ a ninguém a começar pelo Estado”. E sem crédito como pode uma economia funcionar? Nos últimos dois ou três anos temo-nos multiplicado em acções de promoção do empreendedorismo: educação primária, secundária e superior; formação; conferências; legislação; esquemas de financiamento; mentoria... um sem número de acções por todo o lado e por todo o país. Contudo nenhuma actividade empreendedora sustentada se pode desenrolar neste pôr de lado a consciência e colocar a ausência de vergonha no seu lugar.

A riqueza de um país depende da produtividade dos seus cidadãos que, por seu turno, depende dos recursos, da tecnologia e da organização. Muitos países – o Japão e outras economias asiáticas são disso um exemplo – conseguiram ultrapassar a ausência de recursos naturais devido aos avanços tecnológicos e à organização. Como os obstáculos internacionais à aquisição de tecnologia estão hoje quase desaparecidos, o elemento último, a necessidade crucial para se aumentar a produtividade e, consequentemente, a riqueza é o desenvolvimento de uma boa organização. Mas a organização não existe num vácuo, ela opera em sistema, é parte de um grupo de elementos interdependentes e inter-relacionados que formam um todo complexo, isto é, o comportamento de determinados elementos afecta o comportamento de todos os outros.

Se temos como prática pagar tarde ou não pagar, aqueles a quem devemos também não poderão pagar a quem devem, num efeito em cadeia que rapidamente se transforma em bola de neve e que, em sistema, nos vai de novo afectar também. E é assim que o desastre surge na vida e nela vai abrindo o seu caminho. A princípio é uma coisita sem importância, oculta em qualquer canto sombrio, mas acaba por tornar inoperante toda a economia.

O à-vontade, a norma que se instalou entre nós do não pagar como legítimo, socialmente aceite e até representativo de uma certa sagacidade nos negócios – como ilustra o ditado “pagar e morrer quanto mais tarde melhor” – entra na esfera dos princípios morais. Como tal, é vago e abstracto e a sua aplicação aos negócios é frequentemente indeterminada e difícil de executar. Ele traz também muitas outras coisas indesejáveis como a falta de confiança, obviamente generalizada na nossa economia e que, como todos sabemos, impõe elevados custos de transacção e, portanto, rudes golpes no empreendedorismo. O emprendedorismo poderá levar à prosperidade do nosso país, mas o simples desejo de prosperidade não chega para que o empreendedorismo seja um êxito. O facto de se acender lume não significa que haja comida para cozinhar.

Se, neste princípio de 2007, de entre tantos e tão complexos problemas que a nossa economia tem, me pedissem para eleger um, eu escolheria esta indiferença à necessidade de pagar como aquele que mais urge combater. Fechando os olhos e cerrando os punhos pediria dois desejos:

(1) que o Estado não seja como a mãe caranguejo que teima em ensinar os seus filhos a andar a direito. Um Estado que não cumpre os seus prazos de pagamento não pode inspirar os seus cidadãos a que o façam;

(2) que todos nós, cidadãos, saibamos que não podemos passar a vida a enganar, senão acabaremos por nos enganar a nós próprios.

Porque isto aqui não é inferno.

Virgínia Trigo

Texto publicado pela primeira vez no Jornal de Negócios a 02.01.2007

Sem comentários: