Quando regressei a Portugal, depois de mais de treze anos fora do país, muita gente me perguntou como me estava a adaptar. Esses primeiros tempos adquiriram hoje a qualidade de um sonho, ou melhor, da memória de um sonho. Imaginem um fantasma de regresso à sua antiga casa para finalizar uma tarefa inacabada: a estrutura é vagamente familiar, onde dantes havia uma porta está agora uma janela; a biblioteca é um quarto pintado de azul onde as crianças brincam; na sala há um televisor novo. Esta é a minha casa e ao mesmo tempo não é. Posso circular livremente, mas ninguém me vê. Sou absolutamente irrelevante o que me dá uma certa vantagem para observar.
Ainda assim foi já depois do meu regresso que assisti a um fenómeno singular: o da ascensão e disseminação, até agora imparáveis, da palavra empreendedorismo. Quando em 2003 o ISCTE avançou com um dos primeiros cursos a nível de licenciatura, os meus alunos não faziam a mínima ideia ao que iam, mas apenas dois ou três anos depois, de norte a sul do país, no ensino superior e também já no secundário, por todo o lado existem disciplinas ou actividades relacionadas com empreendedorismo. Ainda bem. De costume procuramos sempre mudar qualquer coisa fora de nós quando o que é necessário mudar é a nossa forma de pensar para podermos então mudar os nossos desejos e acções.
E eis que me encontro de novo fora de Portugal, precisamente em Silicon Valley, no baluarte do empreendedorismo mundial. Os meus dias seguem os ritmos caprichosos destes meses de primavera, recheados de múltiplas sessões de empreendedorismo, ao sabor dos planos dos meus anfitriões e para meu prazer verdadeiro. Um exemplo? Na madrugada de 29 de Abril um camião cheio de combustível despenhou-se num dos viadutos que ligam Oakland a S. Francisco. Incendiou-se e derreteu toda a estrutura fazendo-a abater. De imediato foram tomadas várias medidas: o governador determinou “estado de emergência”; o BART (sistema ferroviário da zona da Baía) forneceu dois dias de transporte gratuito; por todo o lado se anunciavam percursos alternativos; ainda não eram passadas 24 horas já a obra estava adjudicada e a arrancar. No dia 1 de Maio nem um escombro restava, apenas um pó dourado se elevava com o vento, em espiral, como uma breve saia voadora. Dez dias depois do acidente, o construtor anunciava e as imagens mostravam que, nesse dia às 5 da manhã, um viaduto provisório seria aberto nos dois sentidos. Entretanto as obras continuariam e a nova ponte estaria pronta em 27 de Junho. Por cada dia de antecipação o construtor receberá 200.000 dólares e pagará outro tanto por cada dia de atraso.
O que torna possível este exemplo de empreendedorismo público e privado, e muitas vezes esquecemos, são os aspectos sistémicos – não transferíveis – do modelo americano, no qual o empreendedorismo se insere e de que fazem parte um conjunto de políticas, suportadas por atitudes culturais e sociais favoráveis, que definem a relação risco/recompensa de potenciais empreendedores. O empreendedorismo desenvolve-se em ecossistema e é profundamente afectado pelos contextos locais em que ocorre. No caso do nosso país dois aspectos contextuais são absolutamente singulares: por um lado a institucionalização entre nós do não pagamento ou do atraso no pagamento inibe a acção empreendedora porque (i) impede materialmente a realização continuada das transacções; (ii) quebra a confiança nas pessoas e no sistema; e (iii) se traduz numa falta de respeito pela actividade empreendedora não atraindo mais e porventura melhores indivíduos ao sistema. Disso já aqui falei num artigo de 2 de Janeiro deste ano.
Por outro lado, a estrutura das compensações inseridas na nossa economia é de tal forma que, sem que disso nos apercebamos, premeia mais a ausência de acção do que a acção. Qualquer indivíduo, em Portugal ou nos Estados Unidos é atraído por uma promessa de sucesso: se para mim for mais compensador possuir um espaço inactivo do que tê-lo a funcionar, se as actividades especulativas ou rentistas forem mais atraentes do que a economia real, é por elas que eu irei optar. E todos nós podemos encontrar inúmeros destes exemplos nos centros das nossas cidades, no interior do país ou nos nossos conhecimentos pessoais.
Não há dúvida de que Portugal e outros países europeus enfrentam o desafio conjunto do empreendedorismo e da inovação para poderem alcançar um determinado nível de emprego e de desenvolvimento económico, mas quanto mais conheço o modelo americano mais me convenço que ele não nos serve ou pelo menos não o podemos adoptar sem profundamente o adaptar. Na Europa os países de maior sucesso competitivo – a Suécia, a Finlândia, a própria Espanha – foram os que desenvolveram modelos de empreendedorismo endógenos, baseados nas vantagens e desvantagens dos seus múltiplos contextos locais. É por isso que existem claramente dentro de mim duas pessoas: uma acredita que é preciso formar e a outra pergunta se não estaremos a formar para falhar.
Virgínia Trigo
ISCTE Business School
1 comentário:
Gostei bastantes do artigo, Parabéns Professora.
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