11/25/2010

CRÓNICAS DA CHINA de Virgínia Trigo - 'A Glória Breve da Pasta de Sardinha Manná em Hong Kong'



Se houvesse uma espécie de concurso para Miss Universo entre todas as cidades do mundo, Hong Kong iria por certo ter muitas nomeações: possui o terminal de aeroporto com o maior volume de carga aérea do mundo (cerca de 2,5 milhões de toneladas de carga por ano) e também o maior porto de contentores; o maior consumo de brandy e cognac per capita; o maior número de Rolls Royce por quilómetro quadrado; o maior passeio rolante; o maior consumo de laranjas (25 kg por ano e por pessoa); o maior consumo de collants por cada par de pernas e, com o maior número de bilionários por cada cem milhões de pessoas, os habitantes de Hong Kong mostram-se particularmente imunes a assomos de inveja social.

Em muitos outros aspectos, apesar da ambiciosa concorrência de Xangai, Hong Kong continua imbatível: é considerada pelo Índice de Liberdade Económica da Heritage Foundation, há 16 anos consecutivos, a economia mais livre do mundo; ocupa o segundo lugar no Easy of Doing Business Index do Banco Mundial; possui um sistema financeiro sólido, vastas reservas de divisas estrangeiras, praticamente não tem dívida pública, o sistema legal é forte e as medidas anti-corrupção rigorosas. Tudo garantias para que Hong Kong continue a ser para os serviços – 91% do seu PIB – o coração da Ásia.



Em certos dias Hong Kong tem também as maiores filas à porta das lojas Louis Vuitton de que tenho memória e é, pude por diversas vezes comprová-lo, o sítio onde as pessoas carregam mais depressa no botão “Fechar a Porta” de um elevador quando vêem alguém a correr para entrar. Foi num desses dias, já a sair do elevador, que a minha amiga Nancy Lau me telefonou para pedir, considerando a minha deslocação em breve a Hong Kong, que lhe levasse algumas embalagens de Pasta de Sardinha Manná. De Portugal? perguntei. Sim, esta pasta não podia ser encontrada em Hong Kong e tinha simplesmente desaparecido das prateleiras dos supermercados em Macau. Depois me explicaria.

O fenómeno ficara a dever-se à breve mas entusiástica referência ao produto pela estrela de televisão So Sze Wong na série 2 do seu programa “So Good”. DJ, especialista e crítica de cozinha dotada de um estilo e personalidade únicos, So Sze procura especialidades dentro e fora de Hong Kong para as apresentar a uma vasta audiência que vibra com os seus gestos largos e decididos e sobretudo com os seus famosos “Ah So!” exclamados sempre que se depara com algo que a surpreende ou encanta. E foi precisamente com um “Ah So” profundo e vibrante que ela declarou a pasta de sardinha Manná deliciosa. Para que não restassem dúvidas provou-a ali mesmo, em frente do público e exclamou “Ah So!”. Foi quanto bastou para que, no fim de semana seguinte, a população de Hong Kong se precipitasse para Macau em busca do recém descoberto e precioso produto dizimando-o dos supermercados.

O entusiasmo gerado por So Sze não terá durado mais do que escassas semanas, mas os supermercados levaram algum tempo a recompor-se como sempre acontece quando So Sze desencadeia um súbito interesse em algo, provocando uma urgência premente em o adquirir e, se possível, armazenar. A minha amiga Nancy, como os seus concidadãos de Hong Kong, prefere as noites longas, a vida da cidade, o barulho constante da multidão, as filas que põem à prova o seu estoicismo, uma partilhada impaciência colectiva, mas ainda assim não consegue esconder um certo ressentimento para com So Sze e não apenas por causa da escassez da pasta de sardinha Manná. Logo a seguir e ainda em Macau, So Sze escolheu como alvo uma pequena loja de sopa de fitas que habitualmente servia alunos do liceu que Nancy frequentara em criança. Desorientado e incapaz de corresponder a uma tão súbita avalanche da procura, o dono que pacatamente geria a loja há mais de trinta anos, fechou-a provocando um sentimento de orfandade nas várias gerações que, na sua infância e juventude, se tinham deliciado em Macau com o stock limitado, mas servido de forma generosa, de uma loja que jamais tinham visto fechada.

Virgínia Trigo
ISCTE-IUL Business School

11/03/2010

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O artigo na íntegra aqui.


Post by: Cláudia Barbosa